Texto 01: A moça da Bicicleta

 

Eu e minha amiga estávamos indo para Reims participar de um Congresso de Educação. Sentíamo-nos finas, chiques e intelectualizadas com nossos doutorados, nossa profissão e a conquista da autonomia feminina. Com malas cheias de roupas e experiências, lá fomos nós pegar o trem que nos levaria finalmente ao destino após de 12 horas de voo…

Depois de um bom café que tomamos na bela estação Gare de Lest, avistamos o trem que chegava e nos surpreendia com suas cores e estampas de plantações de uva e da relva amarela que refletiam a região de Champagne. Estávamos sorridentes e nos sentimos engraçadas, afinal, mesmo não entendendo ou falando quase nada do francês, havíamos conseguido encontrar a “plataforma” correta.  Agora já não éramos pós-doutora, ela, e doutoranda, eu. Éramos sábias!

Finalmente sentamo-nos e o trem partiu rumo ao seu destino. Minha escuta do barulho do trem e remeteu-me à minha infância. Ah! Quantas vezes viajamos para o interior de São Paulo em família para visitarmos os parentes que lá ficaram. Avós, tios, tias, primos... A lembrança emergiu quase que de imediato e por um momento esqueci da minha idade voltando a ser a menina que adorava quando o trem partia da estação.

A paisagem foi se fazendo presente e com ela vou me encantando com as vilas, as casas pequenas enfeitadas de flores, as ruas organizadas parecendo um cenário. Continuo olhando, louca por apreciar as novas paisagens. 

Mas, certo incômodo se faz presente, pois o que chama mesmo a atenção do meu olhar é a moça do outro lado, sentada perto da janela. Calma, mansa… 

Observo-a como quem olha atentamente um quadro. Cabelos curtinhos com um pequeno rabinho atrás e uma bicicleta ao seu lado que descansa tão calmamente como ela. Vestido leve, acima do joelho, com estampas de pequenas flores coloridas… Ela calça um sapato de lona e borracha que se cruzam por entre as pernas, preguiçosamente esticadas. Ah! Lembro-me de novo: parecem minhas alpargatas que calçavaantigamente.

Com ela, um livro. Ela o lê como quem saboreia um doce gostoso, sem medo de terminar. Penso nos inúmeros livros que tenho por ler, todos iniciados e inacabados como se os consumisse um pouco e precisasse de outro para consumir um pouco mais. 

Olho para minha linda mala vermelha cintilante. De repente, sinto-me pesada, cheia de roupas e a moça ali tão leve... Penso que seria tão mais simples viver assim, sem tantas roupas a mais, sem tantas coisas a mais e sem tanta leveza a menos… 

Penso nas caminhadas que não faço – o que tem resultado certo inchaço nos pés, penso nas paisagens que não vejo no meu cotidiano, mesmo passando 2 ou 3 horas por dia dentro de um carro. Penso em como tenho vontade de colocar um simples vestidinho daquele e sair sem pensar se estou com o corpo perfeito.

O trem segue seu curso com suas paisagens e muitas reflexões vou fazendo naquelas horas...

É preciso desapego para largar os preconceitos que tenho comigo mesma. Desapego para saborear um livro do começo ao fim pelo simples prazer de ler. Desapego para deixar o cabelo curtinho, preso como o dela, ou solto, rebelde, cacheado... Desapego para deixar o carro confortável e andar a pé ou de bicicleta.

É preciso humildade para ser eu mesma: leve, serena, mansa, doce, sorridente. Sem desejos de maldade, sem vontade de entrar na briga. Apenas poesia…

​Ao olhar mais uma vez esse quadro de arte que intitulei A moça e a bicicleta, reflito que tudo nele é coerente. A interior do sul da França passando o fundo, a leveza de aparência e de espírito – o mergulho nas profundezas do livro e o caminho dos simples trilhado por aqueles pequenos pés cobertos apenas com a sapatilha de lona bege. Eu preciso dessa coerência.

Com a mesma tranquilidade, a moça fecha o livro, coloca-o na velha mochila cor de rosa com muitas palavras escritas em francês, pega a sua bicicleta e desembarca na mais minúscula das estações de trem que já vi.

O trem continua sua viagem. Minha amiga olha para mim e nos entendemos, ou melhor, nos sabemos. Não era um saber de lá de fora, era um saber que nos percorria. 

Entendemo-nos apenas pelo olhar, afinal anos e anos de estudos na interdisciplinaridade valeram para sermos mais sensíveis para um diálogo entrelaçado e constante com o mundo.

O trem continua seu curso e nós vamos aprendendo a esperar para aprender a aceitar com simplicidade a fluidez da Vida e todos os encontros que é capaz de nos proporcionar. Ah! A Vida, sempre a Vida e a capacidade que tem de nos surpreender SEMPRE!

La Vie est belle! (será que é assim que se escreve?)

 
Anterior
Anterior

Poema 01: Mínimo

Próximo
Próximo

Texto 02: Escola é gerúndio