Texto 03: Prazer em Viver

 

Um beija-flor adentra na sala onde estou com meu marido. Na janela de vidros altos ele se debate bem na parte mais difícil de alcançar. Seu bico bate freneticamente no vidro transparente para ultrapassá-lo, sempre voando na mesma altura, num tempo que nos pareceu interminável... 

Tentamos de tudo para tirá-lo de lá, colocamos água com açúcar, vaso com flores no lugar mais alto que alcançamos, acenamos com panos buscando sua atenção para que ele se desviasse do obstinado local de repetição.  

Em outras tentativas, procuramos ficar em silêncio, esperamos, para que se sentisse seguro e tentasse outros caminhos, torcemos, e confesso, até rezei...  Mas, nada.

Nos quinze minutos em que o belo beija-flor tentou, calculo eu que foram 72.000 vezes que suas asas bateram (são 80 vezes por segundo) e 18.000 vezes de batimentos cardíacos (são 1200 por minuto). Uma intensa resistência e estado de sofrimento.

Finalmente, ele foi perdendo forças e foi descendo num voo mais baixo, quando meu marido, subindo em uma escada, arriscando-se também, conseguiu retirá-lo por detrás de uma lâmpada, pegando-o com as mãos.

Ele se deixou ficar, inerte. Tentamos dar-lhe água colocando-a em seu bico, mas ele não reagiu.

Observei-o nas mãos de meu marido. E seu corpinho ia, aos poucos, reduzindo a velocidade dos batimentos do seu coração. Fechou os olhos, parecendo morto. 

-Ai, meu Deus! – disse eu, em voz alta.

O protagonista abriu novamente os olhos para em seguida fechá-lo. 

Meu marido me ensinou que ele estava recuperando suas energias. E ele abria e fechava os seus olhos cada vez mais demoradamente...  Filmei-o, fotografei-o com assombro e maravilhamento diante daquela joia da natureza. 

O nosso querido beija-flor finalmente recuperou-se, sentiu-se seguro e voou. 

Não há como não retratar essa vivência, como que para eternizar esse momento aqui. E não há como segurar as reflexões relacionando esse episódio com o analista e o seu paciente.

O analista tem diante de si um ser maravilhoso, repleto de talentos multicoloridos. Olha-o, observa-o e o vê diante de muitas possibilidades. Pode dar-lhe um toque, às vezes um lenço, acenar, tentando dizer-lhe que está realmente ali ajudando-o a lembrar-se de algo que pode estar encoberto para que haja compreensão e o desvio da energia psíquica onde o paciente se colocou e que só o machuca. 

O analista sabe que é na repetição de sua fala, no processo em que é visto e ouvido, em suas inumeráveis sessões, em suas idas e vindas que, de repente, aquele mesmo e angustiante caminho não lhe faz mais sentido. 

Finalmente, cansado existencialmente, ele vai parando de repetir, parando de bater no vidro transparente que o levaria a morte e só o devoraria... 

Muitas vezes ainda sobrevoa o lugar, mas começa a perceber que já não é mais o mesmo e nem tem energias para continuar tentando. Não há mais sentido... E então, novas forças libidinais retornam direcionando-o para algo que lhe oferte mais prazer, porém sem tanta angústia e sofrimento. 

Não se trata de afirmar que não terá alegria e dor. Mas, trata-se de reiniciar o aventurar-se pela vida, conhecendo-se mais e escolhendo fontes psíquicas mais saudáveis de prazer, sabendo que podemos nos transformar continuamente e gerar novos e incríveis movimentos de vida.

 
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